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Saturday, March 24, 2007

AUTOBIOGRAFIA 1960

1-4-60-03-26-sa> selecção autobiográfica ac - o livro do desassossego em reedição – errâncias ac da razão

IDES A TEMPO?

Lucidamente procuro a companhia dos loucos e das crianças, dos magos e primitivos, dos poetas e imaginativos.

Ferreira do Alentejo, 26 de Março de 1960

As poucas horas que me restam são para fechar portas, olhos e ouvidos, calar-me, calar a lembrança de todas as mentiras, fechar e rasgar os livros. Não durmo, não penso, não bole uma folha no mais íntimo de mim. Quietude.

Porque eu caí na armadilha da vossa “felicidade a longo prazo’. Para se distinguir do animal, ente do in-mediato, o ente humano criou a cultura ou mediateidade. Caí também na armadilha da cultura, na esparrela, na curva diabólica e parabólica que nunca mais retorna à origem, ao núcleo. O ente humano é superior ao ente irracional...

Exilastes o sagrado, ficou o osso do profano. Exterminastes o sobrenatural, deixastes o natural. Mas soubestes vós, substituir o que exterminastes? Construir o que destruístes?

Felicidade para depois de amanhã? E eu, vou aceitar a vos­sa felicidade, felicidade que talhastes para mim com forma de mortalha? E quando, para quando é essa felicidade? Mudos deuses os do vosso Olimpo, parca dialéctica a das vossa parcas, silenciosa a vossa sofistica, agora que formulo perguntas.

Pois bem: vou formulá-las a outros oráculos. Aos oráculos de Delfos, às pitonisas, aos magos da Média, às lendas celtas e escandinavas, aos vedas do Industão, aos médiuns espíritas, aos criadores de religiões, a Zoroastro e a Prometeu, a Orfeu e Apolo, à escrita ideográfica dos aztecas, a Buda e a Confúcio, a Hermes e a Paracelso, a Homero e a Gandhi, aos taumaturgos e profetas, a Kardec e a Papus, a Strindberg e a Jarrv, enfim, aos animais, aos irracionais, aos gafados da inteligência, ao refugo da sociedade ocidental, culta e civilizada, metafísica e industrial, dolarizada e militarizada até aos dentes.

Aos animais, aos tais do imediato, os que não se socorrem dos medianeiros, sacerdotes laicos da nossa civilização, cada um com sua receita para a maleita de cada um. Aqueles que por si só encontraram a ponta principal ou primordial da meada, os que não andaram à procura dela, através dos templos e sinagogas da sabedoria (escolas, liceus, universidades).

Sim, sou o que procurou os da cultura livre, religiosamente livres na floresta de enganos da vossa cultura, fossilizada, morta, inerte, cristalizada, hipócrita. Não sei se vedes, é simples a minha des­coberta, uma lapalissiana descoberta, mas deixem-me, com a minha ignorância e os meus ignorantes, com as lendas do meu povo e dos povos do mundo, com as superstições, com todos os sinais da sua animalidade, do seu primitivismo, da imediateidade com o sobrenatural.
Prefiro estes supersticiosos às vossas superstições, quero entender-me com os sacerdotes do sobrenatural e não com os bispos, papas , imperadores do natural. Quero a minha reviravolta em vez das voltas macabras da vossa danação. Agora que já nada tenho a dar nem a receber do grande processo do progresso racionalista, vou voltar-me do avesso a ver se me vejo, a tempo, a ver se me encontro, se fico face a face com a realidade, sem a interposição das vossas metafísicas, sem a intermediação dos vossos metafísicos.

Não vivo por procuração. E comer da vossa cultura é comer por procuração.

Vou reconstituir o vosso puzzlle. Vede, vou converter-me. Autodidacta, ocioso, desempregado, burguês, individualista, reaccionário, - só podia dar nisto, em “convertido» Vós, os metafísicos, ireis dizer que me converti. Mas sabeis vós ao que me converti, depois de conhecer as vossas metafísicas, as vossas mística sociais e “espirituais”, as vossas religiões de Estado e religiões de Igreja, as vos­sas superstições de civilizados, sabeis vós ao que me converti? Sabeis vós?

No meio dos vossos ídolos, deuses, dos vossos Mussolini e dos vossos Péron, dos vossos seminários e das vossas sofias, dos vossos deuses-sputniks, dos vossos deuses-canhões, dos vossos deuses-armas atómicas, dos vossos deuses-socialismo, das vossas ismo-manias, da vossa cambolhada de deuses e deusas, ídolos e sub-ídolos, do vosso sobrenatural de lata, do vosso metafísico do físico, sabei que me converti.

E sei eu que me ides, a mim, chamar metafísico, retrógrado, adorador do sobrenatural, eu, que me estou nas tintas para as vossas metafísicas e men­tiras, deuses e deusas, porque - reparai - só o animal inteligente que sois todos precisa de mediadores - eu, animal imediato não preciso de mediações. Por isso não necessito dos deuses que a vossa cultura inventou, está inventando e continuará a inventar, enquanto for cultura e vós homens cultos.

Sabei, pois, de uma vez por todas, que me não converti a nenhuma religião, a nenhuma ideologia-deus, a nenhum Marx-deus, a nenhum sptunik-deus, a nenhuma confissão religiosa, a nenhuma tenda política, a nenhum asilo ideológico, a nenhum hospício de alienados, a nenhuma cela conventual, a nenhuma cabala mágica, a nenhuma ciência oculta, a nenhuma das vossas semi-soluções. Sabei que não fui um “espírito fraco” submetido à religião. Grito e repito que místicos sereis vós, mais as vossas mentiras científicas, técnicas, políticas. Fui apenas um mamífero na escala zoológica e um mamífero não tem ideologia, metafísica ou religião. Converti-me a mamífero, eis tudo.

Não sou nenhum espírito fraco a quem, perto da morte, consola ouvir falar na imortalidade da alma. Quero é denunciar a vossa comédia, a vossa farsa. Da imortalidade da alma, percebem os poetas, não percebeis vós, cépticos gnósticos e agnósticos de crendices.

Olhai, senhores da razão, autores de romances realistas sem ficção nenhuma, sem invenção nem imaginação, sem magia primitiva, sem mentalidade pré-lógica, olhai, lógicos de todas as lógicas, da formal à matemática, da lógica à logís­tica, e da logística à lógica poética ou simbólica (também os há, venerandos), olhai, promotores da felicidade universal, educadores e teóricos da juventu­de, donos dos filhos dos outros que começais por moldar e desistis a meio, olhai, profetas da esperança individual formulada por cada um de vós e deter­minada objectiva para todos os tempos e lugares, raças e línguas, idades e situações, olhai, experimentalistas, positivistas, espíritos rigorosos e su­btis, autores de todos os livros e de toda a sapiência e de toda a sabedoria, autores de toda a civilização e de toda a cultura exotérica, vulgarizadores, cérebros prodigiosos e infalíveis, papas de mil e uma religiões, olhai: eu admirei-vos, estudei os vossos livros (v. Espaço Mortal), ceguei com as vossas doutrinas, empapei-me das vossas ideologias, teologias, tautologias, abismei-me nos vossos segredos, mas hoje sinto-me ignorante e incapaz perante o que li, vi, conheci. Mais perplexo do que no princípio, desconfio. Cépticos e niilistas nada há comparado a esta inutilidade a que me conduzistes. Porquê? Insuficiência minha? Insuficiência estrutural da espécie a que per­tencemos, eu e vós? Insuficiência vossa?
Não sei nem interessa. Vejo-me sem interesse e vejo-vos sem interes­se. Apenas a dúvida ficou. Não quero, não posso, não sei, não devo acreditar.

Se mergulho nas teosofias e ocultismos, nas práticas mágicas, nas ideias não cartesianas, nos obscurantismos e hermetismos, não me considero por isso fútil ou charlatão. Charlatães me parecem vós, em quem acreditei e que apenas me deixastes de herança a descrença.

É lúcido que vou para a não lucidez, que prefiro a não lucidez. Lucidamente procuro a companhia dos loucos e das crianças, dos magos e primitivos, dos poetas e imaginativos.
Sim, porque foi a imaginação o que vós me roubastes. (Tarde talvez para a reconquistar. Mas tentarei.). A imaginação que permite reconstruir-me a partir do caos. Não quero doutrina de ninguém nem a minha. Quero apenas solucionar-me, aquilo de que nunca cuidastes, vós que propusestes soluções universais para toda a gente. E ninguém se sentiu solucionado por vós.

Dispenso o património cultural, o pedregulho de Sísifo que me esmaga. Não quero aceitar nem fundar mais sistemas, filosofemas, teoremas, aldrabisses. Depois de tanto saberdes da natureza física, de tanto prometerdes ao homem, nada sei de mim, nada os outros sabem de si de cada um de si. Quem decide do meu destino concreto? Eu, apenas eu. Porque me ludibriastes? Porque me ”deseducastes”, porque me prometestes a lua?

A órbita da técnica científica continua a caminhar para o infinito e os iludidos “magos’ da época prometendo a “felicidade” para daí a dias. Calai-vos, que mentis. Exausto e vazio, sei que estou aquém de mim e de todo o progresso que vai para além de mim. Pensastes em dominar a natureza mas a natureza agora revolta-se também, o feitiço volta-se contra o feiticeiro e promete-se, em vez da felicidade, o fim, o suicídio colectivo da espécie. Sabei que suicídio só me interessa o meu, o que cometer às minhas próprias mãos. Não admito a última das indignidades: morrer às mãos dos vossos engenhos diabólicos. Antes a morte que tal sorte. Parece que é tarde para todos. Mas para vós, os iludidos e os que teimais em iludir-nos, mais tarde ainda. A ciência também vos não resolveu. Apenas o barulho dos astros vos distraiu, vos embriagou - para não pensardes no que interessava.

Não importa que o caminho seja errado, tão errado como o que seguia atrás de vós. Mas procurá-lo-ei nas criações oníricas e de vigília da criança, do poeta, do louco e nevrótico, do primitivo e do místico. Eu próprio tentarei reconstituir em mim esses estados, ainda que pague com eles a vida, a vida que afinal entreguei, na sua melhor parte, à vossa voracidade, donos e senhores da minha juventude.

Repito: não sou charlatão, sei que por onde vou e sei porque vou. Conheço o descrédito em que a vossa ciência colocou as ciências ocultas e espíritas, a imaginação e o maravilhoso, as lendas e o fantástico. Por isso mesmo me seduzem, porque vós os desacreditastes, sinal certo da sua valia. Vós próprios já tentais devassar os domínios onde a vossa razão se reacredite e ‘amplie’. Elástica, a vossa razão. (Eu próprio estou a usá-la, não me esqueço nem vós o esqueceis). Pois que seja, que se vire contra si própria, que se meça, que pratique o acto de contrição.

Eu sei que vós ides também proceder a uma ‘revisão”, com vossos óculos prospectivos, do ocultismo, da magia, da cabala, da mitologia e do misticismo. Ao menos, sabeis que por aí ides às ciências humanas. Finalmente, chegastes ao limiar das vossas promessas irrealizadas. E agora é que é - dizeis. Esperai só mais uns aninhos e dar-vos-emos o sistema educativo acabadinho que substitua com vantagem o yoga, ginástica e técnica elementar, simples, axiomática pronta a resolver a inquietação do homem. Só agora reconhecestes que a civilização não fez mais do que barbarizar-nos. Ides a tempo?♥

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